quinta-feira, 18 de junho de 2015

Sobre a Santa humildade - Escritos de Santo Afonso


Da humildade de espírito ou de juízo 

     Depois de ter conhecido os grandes bens que nos oferece a humildade, vamos a prática e vejamos o que é preciso fazer para adquirir esta santa virtude. Distingue-se a humildade de espírito e de juízo da humildade de coração e de vontade. Falemos aqui da primeira, sem a qual não pode obter-se a segunda. A humildade de espírito consiste, segundo S. Bernardo em ter uma fraca opinião de si mesmo e se ter por vil e desprezível, tal qual se é na realidade. — A humildade é a verdade, como escreveu Sta. Teresa, e o Senhor ama tanto os humildes, porque eles amam a verdade. É certo que nada somos, que somos ignorantes, cegos, incapazes de fazer qualquer bem. Por nós mesmos, não temos outra coisa que o pecado, que nos torna mais vis do que o nada, e nada podemos fazer senão o mal. Todo o bem que temos e fazemos, é de Deus e dele vem. O humilde tem sempre diante dos olhos esta verdade, e por isso de nada se apropria senão do mal, e se julga digno de todo o desprezo. É por isso que não pode tolerar que lhe atribuam um merecimento que não tem. 

     Ama, ao contrário, ver-se desprezado e tratado como merece. É por isso que se faz tão querido de Deus, diz S. Gregório. — Dai, Sta. Maria Madalena de Pazzi, falando das religiosas, dizia que as duas bases da perfeição destas são o amor a Deus e o desprezo de si mesmas, e acrescentava que verão a Deus no céu tanto mais claramente, quanto mais se houvessem abatido na terra. — É preciso pois orar sempre como Sto. Agostinho: Senhor, fazei-me conhecer quem sou eu e quem sois vós. — Vós sois a fonte de todo o bem, e eu sou a mesma miséria, que por mim nada tenho, nada sei, nada posso e nada valho, senão para fazer o mal. — O Sábio diz que Deus não é honrado senão pelos humildes. — Com efeito, sendo ele o único e sumo bem, só os humildes o reconhecem por tal. Se, pois, quereis honrar a Deus, tende sempre diante dos olhos as vossas misérias, e confessai com verdadeira sinceridade que, por vós mesmas, só tendes o nada e a malícia, e que Deus é tudo. Ficai pois convencidas de que só mereceis afrontas e castigos, e oferecei-vos para receber com submissão todos os males que o Senhor vos enviar.

      No entanto, observai as seguintes regras: 1.º - Não vos glorieis de coisa alguma que houverdes feito. Muito mais do que vós fizeram os Santos. Por isso eu aconselho a todos que façam a leitura espiritual sobre as vidas dos santos, porque, por ela, ao menos se abaterá a nossa soberba, vendo as grandes coisas que fizeram por Deus; e nos envergonharemos do muito pouco que temos trabalhado e trabalhamos por Nosso Senhor. Demais, como podemos gloriar-nos de alguma coisa, sabendo que, se acaso temos praticado algum ato de virtude, tudo é dom de Deus? — Lá disse S. Bernardo: Quem não zombaria das nuvens, se quisessem vangloriar-se da chuva que enviam à terra! Nós merecíamos a mesma irrisão, se ousássemos gloriar-nos do pouco bem que temos feito. — Narra o bem-aventurado Padre Mestre Ávila que um grande senhor casou-se com uma pobre camponesa. Para que não se ensoberbecesse por se ver cercada de criados e vestida com rico aparato, mandou que se conservassem os seus hábitos antigos e grosseiros, e que ela os tivesse sempre diante dos olhos. — O mesmo deveis fazer. Quando descobrirdes em vós alguma coisa de bom, olhai para os vossos antigos hábitos, lembrai-vos o que já fostes outrora e, por fim, conclui que todo o bem que tendes é uma esmola que Deus vos fez. — Dizia Sto. Agostinho: Senhor, se alguém vos apresentar seus merecimentos, não faz mais do que apresentar-vos os vossos dons. — Quando Sta. Teresa fazia ou via praticar uma obra boa, punha-se logo a louvar a Deus, pensando que dele vinha todo aquele bem. Pelo que sabiamente observava a santa, que a humildade não nos impede de reconhecer as graças especiais que o Senhor nos dá com mais abundância do que aos outros. Isto não é soberba, dizia ela; tal conhecimento ajuda a nossa humildade e a nossa gratidão, fazendo-nos ver que somos mais indignos do que os outros e mais favorecidos do que eles. E acrescentava a santa que uma alma jamais conseguirá fazer grandes coisas por Deus, sem antes reconhecer ter dele recebido grandes dons. 

     O essencial está em distinguir sempre o que é de Deus, e o que é nosso. — S. Paulo não tinha escrúpulo de afirmar que ele tinha trabalhado por Jesus Cristo mais do que todos os outros apóstolos. Mas acrescentava logo que tudo quanto tinha feito não era obra sua, porém da graça divina que nele assistia. — 2.º - Sabendo que sem Deus nada podeis, não confieis demais em vossas próprias forças. Imitai a S. Felipe Neri que sempre desconfiava de si mesmo. O soberbo confia demais no seu valor, e por isso cai justamente, como aconteceu a S. Pedro, que protestou antes de morrer com Jesus Cristo do que ser induzido a negá-lo. Como, porém, assim tinha falado confiado demais nas próprias forças, apenas chegando a casa do pontífice, renegou o seu divino Mestre. Guardai-vos, pois, de confiar nas resoluções tomadas e na boa vontade presente, mas ponde toda a vossa confiança em Deus, dizendo sempre: Eu posso tudo, não por mim, mas naquele que me conforta. E então esperai fazer grandes coisas, porque os humildes confiados em Deus mudam de força na frase de Isaías. Desconfiando de si mesmos, deixam de ser fracos como antes eram, e adquirem a fortaleza de Deus. Dai esta sentença de S. José Calazans: “Aquele que quiser que Deus o faça instrumento de grandes obras, procure ser o mais humilde de todos”. Segui o exemplo de Sta. Catarina de Senna. Quando era tentada de vanglória, humilhava-se; e quando acometida de desânimo, confiava em Deus, pelo que o demônio lhe disse um dia com raiva: “Maldita tu e maldito quem te ensinou esse meio de me vencer. Não sei mais como te apanhar”. — Assim, pois, quando o inimigo vos disser que para vós não há perigo de cair, tremei, pensando que, se Deus vos deixa um instante, estais perdidas. 

     Quando fordes tentadas de desânimo, dizei com Davi: Senhor, pus em vós todas as minhas esperanças, confio que não serei confundida, privada da vossa graça e feita escrava do inferno. — 3.º - Se por desgraça cairdes em algum pecado ou defeito, não desanimeis, mas humilhai-vos, arrependei-vos, e, então, conhecendo melhor a vossa fraqueza, encomendai-vos a Nosso Senhor, com maior confiança. Indignar-se contra si mesmo desanimando depois da queda, não é humildade, é antes soberba. Esta é que faz que um se admire de ter podido cair em tal falta: é soberba e artifício do demônio, que pretende assim fazer-nos abandonar o caminho da perfeição, desanimados de poder ir adiante, e desse modo fazer-nos precipitar em maiores pecados. Não, nesse caso, mais do que nunca confiemos no Senhor, valendo-nos de nossa fraqueza e infidelidade para mais esperarmos na sua divina misericórdia. Assim se entende esta palavra do Apóstolo: Tudo pode contribuir para o nosso bem. Onde a Glosa acrescenta: Ainda os pecados. A este propósito, o Senhor dizia um dia a Sta. Gertrudes: Quando alguém tem uma mancha na mão, lava a mão e esta fica mais limpa do que antes. Assim a alma que depois do pecado se purifica pelo arrependimento, torna-se mais agradável aos meus olhos do que antes da queda. Especialmente, Deus permite às vezes que as almas ainda não bem arraigadas na humildade, caiam em alguma falta, afim de que aprendam a desconfiar de si mesmas e confiar só no seu auxílio. Todas as vezes, pois, caríssimas irmãs, que houverdes caído em algum defeito, não fiqueis nele caídas, mas levantai-vos com um ato de amor e de dor, com o propósito de emendar, cheias de confiança em Deus. Dizei então com Sta. Catarina de Gênova: “Senhor, eis os frutos do meu jardim, e se me não sustentais, eu farei ainda pior; mas espero em vós não cair mais, como proponho”. — Se todavia cairdes de novo, levantai-vos sempre do mesmo modo, e nunca abandoneis a resolução de ser santas. 

— 4.º - Se souberdes que alguém caiu em pecado grave, não vos ensoberbeçais de vós mesmas, nem vos admireis, mas tende compaixão dessa alma, e temei que o mesmo vos aconteça, dizendo com Davi: Se o Senhor me não tivesse sustentado, eu estaria agora no inferno. Acautelai-vos, pois, de vangloriar-vos de estar isentas dos defeitos que virdes nas outras; do contrário, o Senhor vos punirá, permitindo também a vossa queda, como aconteceu a um velho monge de que fala Cassiano. Certo jovem torturado longo tempo por uma forte tentação desonesta foi ter com um monge velho para pedir-lhe auxílio; mas este em vez de dar-lhe coragem e consolo, mais o acabrunhou e afligiu, cumulando-o de impropérios e dizendo-lhe: “Como! um monge ousa pensar tantas misérias?” Mas, que aconteceu? Permitiu depois o Senhor que o velho fosse tão fortemente tentado pelo espírito da impureza, que andava correndo como louco, pelo mosteiro. Então, o abade Apolo que já tinha sido informado da sua indiscrição; foi procurá-lo e disse-lhe: Sabe, irmão, que Deus permitiu em ti essa tentação, em castigo de teres testemunhado tanto espanto do pobre moço que te pediu socorro, e para aprenderes a compadecer-te do próximo em casos semelhantes. Tal é também o aviso do Apóstolo aos seus discípulos, dizendo-lhes: Se alguém deve corrigir a outrem, não o faça com dureza e desprezo, mas antes lembre-se que é tão miserável e frágil como o delinqüente; do contrário, Deus permitiria que fosse assaltado da mesma tentação, que o precipitaria talvez no mesmo pecado, em que se espanta de ver caído o seu próximo. 

     A este propósito conta também Cassiano que o abade Machéte confessa confessava ter caído miseravelmente em três faltas, que antes tinha condenado em seus irmãos. — 5.º - Considerai-vos como a maior pecadora que existe na face da terra. As almas verdadeiramente humildes são mais esclarecidas da luz celeste, e como conhecem melhor as perfeições de Deus, também vêem melhor as suas misérias e os seus pecados. Dai vem que os santos, cuja vida era tão exemplar e tão diferente da dos mundanos, se diziam, não por exagero, mas com verdadeira convicção, os maiores pecadores do mundo. — Assim se julgava S. Francisco de Assis. — S. Tomas de Vilanova era continuamente assaltado de temor, pensando, dizia ele, nas contas que havia de dar a Deus pela sua má vida. — Sta. Gertrudes considerava um milagre não se abrir a terra debaixo de seus pés, para engoli-la por causa de seus pecados. — S. Paulo eremita derramava lágrimas, dizendo: “Ai de mim pecador, que não mereço ter sequer o nome de monge”. — O bem-aventurado padre Mestre Ávila refere a este propósito que uma pessoa de grande virtude, tendo rogado a Deus lhe fizesse ver qual era o estado de sua alma, obteve a graça pedida e a viu tão disforme e abominável, embora só tivesse cometido pecados veniais, que exclamou: Senhor, por misericórdia, tirai-me de diante dos olhos essa figura monstruosa.— 6.º - Guardai-vos, pois, de vos preferir a quem quer que seja. Basta um julgar-se melhor do que os outros, para se tornar o pior de todos, assegura Trithemio. Assim também basta que alguém creia ter grandes merecimentos para perder os que tem e não ter mais nenhum. O principal merecimento da humildade consiste em crer um sinceramente que não tem nenhum direito adquirido e que não merece senão afrontas e castigos. Os dons e graças que Deus vos tem concedido não serviriam senão para vos fazerem condenar com maior rigor no dia do juízo, se abusásseis desses dons, elevando-vos acima das outras. Mas não basta não vos antepordes à nenhuma; é preciso, como já ficou dito, considerar-vos a última e a mais indigna de todas as vossas irmãs. E porque? Primeiramente, porque conheceis sem dúvida os muitos pecados que tendes cometido, e ignorais os pecados das outras; e, ao contrário, sabeis que nada possuis, e não conheceis muitas virtudes ocultas. Além disso considerai que, com as luzes e graças que o Senhor vos prodigalizou, já devíeis ser uma santa. Oh! se Deus houvesse dado tantas graças a um infiel, talvez fosse já um serafim; e vós ainda estais tão atrasada e tão cheia a imperfeições e defeitos! O pensamento da vossa ingratidão deve também confundir-vos a ponto de desejardes viver debaixo dos pés de todas, porque, diz S. Tomás, o pecado se torna tanto mais grave, quanto maior for a ingratidão de quem o comete. 

     Quem sabe se um só pecado vosso não pesa mais diante de Deus, do que cem pecados de outra pessoa menos favorecida e menos cumulada de graças do que vós? Já sabeis que tendes pecado muito. Sabeis que a vossa vida não foi senão uma contínua urdidura de culpas voluntárias; e se acaso praticastes alguma obra boa, todavia será tão contaminada de defeitos e de amor próprio que talvez mais mereça castigo, do que prêmio. — 7.º - Todas estas considerações devem persuadir-vos, segundo a exortação de Sta. Maria Madalena de Pazzi a todas as religiosas, que não mereceis sequer beijar a terra que pisam as vossas irmãs. Deveis crer que se recebeceis todos os ultrajes imagináveis e se estivesses no fundo do inferno abaixo de todos os condenados, tudo seria pouco em comparação com o que mereceis. E, por isso do fundo do abismo das vossas misérias alçai sempre a voz ao céu, dizendo: Ó Deus, vinde em meu auxílio; Senhor, apressai-vos em me socorrer. Sem isso, estou perdida e vos ofenderei ainda mais do que dantes e mais do que todos. Esta prece deveis repeti-la sempre, quase a todo o instante. Sim, quando estiverdes no coro ou na cela, quando andardes pelo mosteiro, quando descerdes ao locutório ou ao refeitório, quando vos levantardes da cama ou deitardes, repeti sempre a todo o momento: Senhor, ajudai-me; Senhor, assisti-me; Senhor tende misericórdia de mim! De outra sorte, no momento, em que descuidardes de recomendar-vos a Deus, podereis começar a ser a maior pecadora do mundo.

    Fugi, pois, mais do que da morte, de todo ato ou pensamento de soberba, por menor que seja. Termino por esta grave sentença de S. Bernardo: Não temos por que temer qualquer dano proveniente de alguma humilhação, por maior que seja; mas devemos ter receito até do menor movimento de soberba, porque pode precipitar-nos em todos os males.

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