quinta-feira, 18 de junho de 2015

Escrito de Santo Afonso sobre a Santa humildade

DO LIVRO: A VERDADEIRA ESPOSA DE JESUS CRISTO

CAPITULO 11

     A humildade é chamada pelos santos base e salvaguarda de todas as virtudes. Ainda que não seja a primeira em excelência, todavia diz Sto. Tomás, ela tem o primeiro lugar como fundamento. Assim como na construção de um edifício, o fundamento deve preceder as paredes e colunas, embora fossem estas de ouro, assim na vida espiritual, é a humildade que deve vir em primeiro lugar, a fim de afastar a soberba, a qual Deus resiste. Dai este pensamento de S. Gregório: Querer praticar as outras virtudes sem a humildade é atirar pó ao vento, que logo o dispersa. — Eis um fato referido no Espelho dos exemplos: Num deserto vivia um ermitão de grande reputação de virtudes. Achando-se para morrer, mandou pedir ao seu abade que lhe trouxesse o sagrado viático. Veio o abade e ao mesmo tempo chegou certo ladrão público, que, compungido por aquela função, não se julgou digno de entrar, na cela do solitário, e, de fora, pôs-se a dizer: “Quem me dera ser igual a ti!” — Ouvindo isto o monge, cheio de orgulho, respondeu: “Certamente tu serias feliz, se fosses como eu”. — Ora, que aconteceu? O ladrão saiu dali correndo para se confessar, mas caiu num precipício e morreu logo. Dali a pouco faleceu também o ermitão. Um outro monge, seu companheiro, deplorou a sua morte, e ao mesmo tempo mostrou grande alegria pela morte do ladrão. Sendo perguntado porque assim procedia, disse que o ladrão se tinha salvado pela contrição que tivera de seus pecados, e o solitário se tinha perdido pela soberba. — Mas ninguém acredita que este tenha se ensoberbecido somente na hora da morte. O seu modo de falar na última hora dá a entender que a soberba há muito tempo estava enraizada no seu coração e por isso o perdeu. 

— Enfim Sto. Agostinho nos adverte que se a humildade não nos preceder e nos acompanhar até o fim, todo o bem que fizemos, nos será roubado pela soberba. Esta bela virtude da humildade era pouco conhecida e pouco estimada dos homens, e até era aborrecida na terra, onde, por toda a parte, reinava a soberba, que foi a causa da ruína de Adão e de todos os seus descendentes. Foi por isso que o Filho de Deus desceu do céu e no-la veio ensinar, não só com a sua palavra, mas também com o seu exemplo. Para esse fim humilhou-se até se fazer homem e tomar a forma de servo. Quis mesmo, entre os homens, ser tratado como um objeto de desprezo e como o último de todos, no dizer do profeta Isaías. — Com efeito nós o vemos, em Belém, nascido em um estábulo e reclinado em uma manjedoura; em Nazaré, desconhecido e pobre em uma oficina, feito servente de um mísero artista. Nós o admiramos depois, em Jerusalém, flagelado como um escravo, esbofeteado como um vilão, coroado de espinhos como um rei de comédia, e enfim crucificado como um malfeitor. Escutemos agora o que ele nos diz: Eu vos dei o exemplo afim de que façais o mesmo que fiz por vós. — É como se tivesse dito: Meus filhos, eu abracei tantas ignomínias, para que vós, vendo o meu exemplo, as não desprezeis. — Sto. Agostinho, falando da humildade de Jesus Cristo, faz esta reflexão: Se esta medicina não nos livra da nossa soberba, não sei outro meio mais apto para consegui-lo. — Eis o que o mesmo santo escreveu o Dioscoro: Amigo se queres saber qual a virtude principal para nos fazer discípulos de Jesus Cristo, e mais própria para nos unir a Deus, eu te direi que a primeira é a humildade, a segunda a humildade, a terceira a humildade; e se me perguntares quantas vezes quiseres, eu responderei sempre a mesma coisa. Os soberbos são objeto de ódio e de abominação aos olhos de Deus, assegura o Sábio. — Sim, porque o soberbo é ladrão, é cego e é mentiroso. É ladrão, porque se apropria do que é de Deus. Tendes alguma coisa que não houvésseis recebido? pergunta S. Paulo. Se alguém ajaezasse o seu cavalo com xairel de ouro, poderia porventura o animal, caso fosse dotado de razão, gloriar-se deste arreio, sabendo que dele pode ser despojado ao menor aceno do seu dono? É cego como foi dito àquele prelado do Apocalipse: Tu pensas ser rico, e não sabes que és um miserável e cego. — Com efeito que temos nós de nós mesmos senão o nosso nada e os nossos pecados? Ainda no pouco bem que fazemos, diz S. Bernardo, se quisermos apreciá-lo no seu justo valor, acharemos só desordens e defeitos. — É mentiroso porque todos os bens que o homem tem da natureza, como a saúde, a inteligência, a beleza, a habilidade; e tudo o que tem da graça, como os bons desejos, o coração dócil, o espírito esclarecido, são outros tantos bens recebidos de Deus.

      Por isso dizia S. Paulo: Eu sou o que sou, pela graça do Senhor. — Pois é certo, continua o Apóstolo, que não posso ter por mim mesmo nem sequer um bom pensamento. Desgraçada a religiosa que se deixa dominar pela soberba! Enquanto este vício nela reinar, o espírito de Deus ai não entrará, mas o demônio fará dela o que quiser. — Dizia S. José Calazans: O demônio serve-se do religioso soberbo como de uma peteca ou bola de jogar. — Refere Cesario que, um dia, sendo levado a certo mosteiro um possesso, o prior, trazendo consigo um monge, ainda jovem e tido por santo, disse ao demônio: Se este religioso te mandar sair, ousarás resistir? — Eu não tenho medo dele, respondeu o demônio. — E porque? — Porque é soberbo. Para ver seus servos livres da soberba, o Senhor permite às vezes que sejam atormentados por tentações vergonhosas, tais como as impuras, e apesar de suas preces instantes e reiteradas, os deixa a lutar. É o que sucedeu com S. Paulo, que escreveu: O aguilhão da minha carne me foi dado, como um enviado de Satanás para me esbofetear. Eu pedi três vezes ao Senhor que o afastasse de mim, e me respondeu: Basta-te a minha graça. — Nota S. Jerônimo que Nosso Senhor não quis livrar o Apóstolo do tormento desta tentação impura, para que se mantivesse na humildade. 

     Deus tolera mesmo, algumas vezes, que uma pessoa caia em algum pecado, para aprender a ser humilde segundo o testemunho de Davi, que confessa ter pecado por lhe faltar a humildade. — Quando te humilhas, diz Sto. Agostinho, Deus desce para se unir contigo; mas quando te ensoberbeces, ele foge de ti. — O rei Profeta diz: O Senhor olha para os humildes com complacência, e aos soberbos vê de longe. — E assim como nós, vendo alguém de longe, não o conhecemos, assim Deus parece dizer, do mesmo modo, que não conhece os soberbos.

 — Em certo mosteiro, havia uma religiosa soberba que chegou uma vez a dizer a outra monja estas palavras: “Olha bem que este hábito que nós ambas vestimos, faz que nos assentemos no mesmo banco; mas, fica sabendo que, na casa de meu pai, tu não merecias nem sequer ser uma criada”. Ora como pensais vós que Deus olhasse para uma freira tão altaneira? Com Deus os soberbos não se coadunam porque o Senhor os não pode suportar. Os anjos soberbos estiveram apenas um momento no paraíso, e no segundo momento o Senhor os expulsou e precipitou no inferno, bem longe de si. Não pode deixar de cumprir-se a palavra: Quem se exalta será humilhado. — É o que aconteceu a um orgulhoso de que fala S. Pedro Damião. Antes de vir a duelo com um seu rival por causa de uma propriedade, que ele queria defender à espada, foi à Missa; e, ouvindo pronunciar as palavras do Evangelho acima citadas,  pôs-se a dizer: Isto não é verdade porque, se me houvesse humilhado, teria perdido o meu domínio e a estima de que gozo. — Enfim, que sucedeu? Quando chegaram à ação, o inimigo o feriu com a espada mesmo na boca, transpassou-lhe a língua sacrílega e o estendeu morto por terra. — O Senhor prometeu ouvir a quem fizer oração. 

     Afirma, porém, S. Tiago que Deus resiste às orações dos soberbos, e as não despacha; enquanto é cheio de liberalidades para com os humildes, abrelhes as mãos, e dá-lhes tudo o que buscam e desejam. — Por isso o Sábio nos recomenda sejamos humildes diante de Deus e esperemos de suas mãos tudo o que pedirmos. Senhor, exclamava Sto. Agostinho, dai-me o tesouro da humildade. — A humildade é um tesouro, porque o Senhor enriquece os humildes com a abundância de todos os bens. Quando o coração do homem está cheio de si mesmo, não pode receber os dons divinos. É preciso pois esvaziá-lo primeiro com o conhecimento do próprio nada. — Davi assim fala ao Senhor: Vós fazeis jorrar as fontes dos vales e correr os rios entre as montanhas. — Deus os faz vales abundantes de água; isto é, enriquece de sua graça as almas humildes, mas não os montes, isto é, os espíritos soberbos. Por estes passam as graças, mas não ficam. Dai também estas palavras da Ssma. Virgem: O Onipotente me fez grandes dons, em atenção à humildade de sua serva, isto é, olhando o conhecimento que tenho de meu nada. Refere Sta. Teresa, na sua vida, que as maiores graças que de Deus recebeu, lhe foram dadas, quando mais se humilhava na presença de Nosso Senhor na oração. Bem disse o Sábio: A oração do humilde penetra os céus, e de lá não desce sem que Deus a ouça. — Assim os humildes alcançam de Deus tudo o que pretendem. Não há razão para se temer que o humilde seja confundido e fique desconsolado. 

     É o que levava S. José Calazans a dizer: Se quereis ser santos, sede humildes. — Tal foi o conselho que um santo varão deu a S. Francisco Borgia ainda secular: “Se queres te santificar, pensa todos os dias em tuas misérias”. Fiel a este aviso, o santo consagrava, cada dia, suas duas primeiras horas de oração ao conhecimento e desprezo de si mesmo. — Observa S. Gregório que, assim como a soberba é o sinal característico dos réprobos, assim também a humildade o é dos predestinados. O abade Sto. Antão viu, um dia, o mundo todo cheio de laços armados pelo demônio, e suspirando exclamou: “Quem poderá jamais escapar a tantas perigos!” Ouviu então uma voz que lhe disse: Antão, só a humildade o pode com segurança; aquele que anda cabisbaixo, não tem que temer de ser apanhado. Em suma, como disse o nosso divino Salvador, se não nos fizermos meninos, não na idade, mas na humildade, não conseguiremos ser salvos. — Narra-se na vida de S. Palemon, que um certo monge, caminhando sobre as brasas, disso se vangloriou e pôs-se a dizer aos companheiros: “Qual de vós é capaz de caminhar sobre carvões acessos sem se queimar?” S. Palemon o corrigiu desta vanglória; e depois desgraçadamente, caindo em muitos pecados, acabou a vida em mau estado. — O paraíso está prometido aos humildes que são desprezados e perseguidos nesta terra: Bem-aventurados sois, quando fordes amaldiçoados e perseguidos, porque a vossa recompensa no céu será grande. Além disso, os humildes são felizes não só na outra vida, mas também nesta, segundo outra palavra do nosso divino Redentor: Aprendei de mim a ser mansos e humildes e gozareis da paz, em vossas almas. — O soberbo nunca encontra a paz, porque jamais consegue ser tratado segundo o vão conceito que tem de si mesmo. Ainda quando é honrado, fica descontente de ver outros mais honrados do que ele. Sempre falta-lhe ainda alguma honra que deseja, e esta privação o atormenta mais do que o consolam todas as honras que já possui. 

     Quantas não eram as do soberbo Aman na corte de Assuero, a ponto de ter direito de assentar-se à mesa do rei? Todavia, porque Mardocheu não queria saudá-lo, julgava-se infeliz e dizia: No meio de tanta prosperidade, penso nada possuir, enquanto vir Mardocheu assentado à porta do palácio. — E quais são as honras que recebem os soberbos! Não são de regozijá-los, porque lhe são prestadas à força, só pelo respeito humano. — Segundo nota S. Jerônimo, a verdadeira glória foge de quem a deseja, e persegue a quem a despreza, do mesmo modo que a sombra segue a quem dela corre e foge de quem a quer buscar. — Ao contrário, o humilde está sempre contente, porque, se recebe alguma honra, a julga acima  de seus merecimentos; e, quando o cobrem de afrontas, crê merecer maiores pelos seus pecados, e diz como o santo Jó: Pequei e sou verdadeiro culpado; o meu castigo está aquém das minhas faltas. — Neste ponto, S. Francisco de Borgia nos deixou um belo ensinamento. 

     Tendo de fazer uma longa viagem, aconselharam-lhe que mandasse alguém adiante para preparar a hospedagem, afim de evitar os incômodos, a que se expunha, chegando sem avisar. O santo respondeu: “Oh! por isso, nunca deixo de me fazer preceder do batedor. Sabeis qual? A lembrança do inferno, que mereci. Este forriel prepara-me, em qualquer hospedaria, aposentos régios, comparando-os com o lugar em que merecia estar”.

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